20.06.2024 - Cerimônia de entrega de Unidades Habitacionais do Minha Casa, Minha Vida no Residencial Cidade Jardim III. Fortaleza - CE. Foto: Ricardo Stuckert / PR (Ricardo Stuckert/PR/Agência Brasil)
Instituto Millenium
Publicado em 9 de maio de 2025 às 18h52.
Por Tailize Scheffer
Em abril de 2025, o governo anunciou uma nova modalidade do programa Minha Casa, Minha Vida, voltada à população em situação de rua. Com forte apelo social, a medida prevê a entrega gratuita de moradias para pessoas registradas no Cadastro Único (CadÚnico) e que comprovem pelo menos seis meses vivendo nas ruas.
Embora o projeto pareça, à primeira vista, um gesto humanitário e uma resposta à crise social crescente, uma análise cuidadosa revela que o programa serve como instrumento de fortalecimento eleitoral para o governo. Trata-se de mais um exemplo da dinâmica descrita pela teoria das elites: a elite governante utiliza políticas públicas para consolidar seu poder político.
O contexto é oportuno. O Brasil vive um agravamento visível da crise de moradia: estima-se que mais de 300 mil pessoas estejam em situação de rua em 2025, número que cresceu exponencialmente após a pandemia. Neste cenário, apresentar uma solução concreta como a entrega de moradias gratuitas é, inegavelmente, um paliativo.
A estratégia anunciada reserva 3% das unidades do programa para a população de rua, com financiamento integral pelo orçamento federal. É uma ação interessante, em tese capaz de transformar a vida de milhares. Contudo, a forma como o anúncio foi conduzido não pode ser ignorada. A divulgação da medida ocorre em pleno início do ciclo pré-eleitoral, num momento em que o governo busca reverter a perda de popularidade e pavimentar o caminho para as eleições de 2026.
Em eventos públicos, o presidente e seus ministros repetem o discurso de que “somente um governo popular consegue entregar casa para quem mais precisa”, associando diretamente o programa à sua imagem política.
A lógica do benefício direto e o reforço da base eleitoral
Programas sociais de grande impacto material têm histórico de fortalecer eleitoralmente quem os implementa. Não se trata só da política pública, mas de vínculo emocional e “gratidão” política: famílias que recebem benefícios materiais tendem a associá-los à liderança que os proporcionou.
A modalidade do Minha Casa, Minha Vida para população de rua reforça essa dinâmica: oferece algo concreto, de alto valor simbólico e prático (uma casa) para um dos grupos mais vulneráveis da sociedade. Não é somente a construção de uma casa; é a reconstrução de uma vida, patrocinada diretamente pelo governo federal.
Ao apresentar-se como o responsável por essa transformação, Lula solidifica laços de lealdade com esses novos beneficiários e suas redes familiares e comunitárias; ou seja, ele entrega valor para sua base eleitoral que, em troca, dará apoio político.
Esse é o cerne da crítica apontada pela teoria das elites: o Estado, sob a liderança da elite governante, utiliza políticas distributivas para gerar estabilidade política e reforçar sua posição no poder. Gaetano Mosca descreveu essa prática como o uso da “fórmula política” — um conjunto de crenças e práticas que legitimam a dominação de uma minoria sobre a maioria. No caso brasileiro atual, a narrativa de “Lula, o provedor das casas” atua exatamente como essa fórmula, justificando a permanência do grupo dirigente no comando político.
O populismo habitacional e a “legitimação pela obra”
Ao prometer moradia gratuita para a população de rua, o governo adota um modelo clássico de populismo de obras: grandes projetos, facilmente visíveis e mensuráveis, que demonstram de maneira palpável o "cuidado" do governante com o povo. A entrega das chaves, as cerimônias públicas, as fotografias ao lado dos novos moradores — tudo é cuidadosamente arquitetado para criar uma narrativa de benevolência estatal.
Esse tipo de política é eficaz em consolidar apoios, mas é também um sintoma de governos voltados mais à imagem do que à transformação estrutural. Como apontou Robert Michels, ainda que uma liderança surja de movimentos populares e democráticos, cedo ou tarde ela se transforma numa oligarquia preocupada com sua própria perpetuação.
O Minha Casa, Minha Vida para população de rua, ao se transformar em espetáculo político, se encaixa perfeitamente nessa lógica: beneficia, sim, mas também subordina o beneficiado a uma narrativa de dependência e gratidão ao Estado e ao líder.
Outro elemento que fortalece a tese do uso eleitoral é a fragilidade estrutural do programa. Embora a promessa seja ambiciosa — construir e entregar milhares de moradias —, os desafios operacionais são enormes: falta de infraestrutura adequada nas cidades escolhidas, risco de abandono das unidades por falta de e social contínuo, e sobretudo, o alto custo financeiro em um contexto de restrições orçamentárias.
O financiamento integral das unidades pelo Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) representa uma pressão extra sobre as contas públicas, em um momento em que o próprio governo ite dificuldades para cumprir metas fiscais. A possibilidade de atrasos nas obras, de má gestão dos empreendimentos — como o histórico do programa apresenta —, ou mesmo de abandono de unidades por falta de acompanhamento psicossocial, é real.
Se o objetivo fosse somente resolver o problema da população de rua, alternativas mais rápidas e eficazes poderiam ter sido exploradas: programas de aluguel social escalonados, ocupação de imóveis ociosos já existentes, parcerias locais para soluções emergenciais. No entanto, essas alternativas são menos visíveis, menos fotogênicas, e não rendem os mesmos dividendos políticos de uma cerimônia de entrega de casas novas com a faixa presidencial ao fundo.
Um projeto para durar... até 2026?
A maior fragilidade do projeto talvez seja sua vinculação estreita ao calendário eleitoral. Embora o governo afirme que a meta é entregar até 2,5 milhões de moradias até 2026, a realidade mostra que a maioria das unidades destinadas à população de rua será concluída somente no final do mandato. Isso cria uma correlação direta: a efetivação da política estará fresca na memória dos eleitores no momento da escolha do próximo presidente.
Mais preocupante é que o programa não está sendo desenhado como uma política de Estado perene, mas como uma política de governo circunstancial. A dependência quase exclusiva do orçamento federal, sem um plano de financiamento de longo prazo ou institucionalização que a torne imune a mudanças políticas, mostra que o compromisso real com a questão da moradia para a população de rua é, no mínimo, condicionado aos interesses da elite governante atual.
O programa lançado pelo governo é uma política pública que, embora contenha méritos sociais inegáveis, revela-se também um poderoso instrumento eleitoral.
Ao entregar casas gratuitas para um dos grupos mais marginalizados da sociedade, o governo busca atender simultaneamente a uma demanda urgente e consolidar sua imagem de "governo dos pobres", narrativa utilizada desde a última eleição, fortalecendo suas bases para o próximo pleito eleitoral, em 2026.
O desafio para a sociedade brasileira será garantir que políticas necessárias não sejam capturadas como degraus para projetos pessoais de poder, mas transformadas em compromissos estruturais duradouros — talvez, sem a influência do Estado, mas mediante projetos da própria sociedade civil.