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Na Netflix e no YouTube: dois documentários para entender a Ucrânia

Winter on Fire, na Netflix, e Ukraine on Fire, que pode ser visto no YouTube, mostram versões diferentes para os conflitos com a Rússia

Winter on Fire: cenas de violência na praça Maidan, em Kiev (Reprodução/Reprodução)

Winter on Fire: cenas de violência na praça Maidan, em Kiev (Reprodução/Reprodução)

Ivan Padilla

Ivan Padilla

Publicado em 4 de março de 2022 às 06h30.

Última atualização em 7 de março de 2022 às 10h54.

Winter on Fire: Ukraine's Fight for Freedom, na Netflix, é um documentário com narrativa um pouco piegas e ritmo arrastado. É um filme que tenta emocionar o espectador, feito na medida para concorrer ao Oscar de 2016 – o vencedor naquele ano foi Amy, de Asif Kapadia. Mas tem o grande mérito de exibir imagens chocantes de violência durante os 93 dias que durou a ocupação da praça Maidan, em Kiev, capital da Ucrânia, entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014.

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Ukraine on Fire, que pode ser encontrado no YouTube, tenta ser mais amplo e situa a Ucrânia como um país historicamente dividido por conflitos. Mas é tendencioso ao vender discursos caros ao presidente russo Vladimir Putin, como a falta de uma identidade nacional do país (seria, portanto, uma extensão da Rússia) e o papel de organizações de inspiração nazista nos movimentos de emancipação do país.

A produção deste segundo filme, vale lembrar, é de Oliver Stone, diretor alinhado com governos autoritários e autor de South of Border, sobre Hugo Chávez, Comandante e Procurando por Fidel, sobre Fidel Castro.

Cada um à sua maneira, são dois documentários falhos. O primeiro, reducionista e com pontos em aberto; o segundo, partidário da posição russa. Mas podem ser bastante úteis para nós, ocidentais com pouco conhecimento sobre a Ucrânia, a entender um pouco mais sobre as origens recentes da guerra deflagrada agora pela Rússia.

Winter on Fire: Ukraine's Fight for Freedom

O documentário da Netflix começa com cenas de guerra civil na praça Maidan, no penúltimo dia de confronto entre os manifestantes e a polícia, com cadáveres entre sacos de areia, barulhos de tiros e depoimentos de um rapaz armado de 16 anos que diz que “sempre quis estar na linha de frente da batalha”.

Um breve histórico da Ucrânia então é apresentado, a partir da independência da União Soviética, em 1991. Em 2004, Viktor Yanukovych, um candidato pró-Rússia, é eleito presidente. As eleições então são acusadas de fraude e a população da Ucrânia toma as ruas em um protesto pacífico chamado Revolução Laranja. O resultado da eleição é cancelado.

Em 2010, Yanukovych se elege novamente, agora com um aceno à população ocidental do país e a promessa de um acordo de livre-comércio com a União Europeia. O processo se arrasta até outono de 2013, quando o premiê Mykola Azarov anuncia a anulação do acordo com os países europeus.

Com a memória fresca com os civilizados protestos da Revolução Laranja, a população volta às ruas. No dia 21 de novembro, mesmo debaixo de chuva, um grupo de estudantes, profissionais liberais e artistas com bandeiras da União Europeia ocupa a praça Maidan, na capital Kiev.

A partir daí, a juventude a a se se reunir por lá, no início em clima festivo, com bandeiras da Ucrânia e da União Europeia, música, dança. “A Ucrânia é parte da Europa”, “assine o documento”, “faça o que queremos”. Eram essas as palavras de ordem dos manifestantes.

Mas logo nos primeiros dias dos protestos uma tropa de choque chamada Berkut a a cercar a praça. Revolução a a ser o mote dos ocupantes da praça. Até que começa a repressão. As imagens da polícia batendo forte com cassetetes de metal, manifestantes caídos com a cabeça sangrando, são chocantes.

Nos dias seguintes as cenas de confronto vão se repetindo, com os ocupantes da praça ando a reagir com correntes e a polícia atacando com bombas de gás lacrimogêneo e armas de borracha – e depois com munição. O número de manifestantes vai aumentando, conta-se aos milhares. O motivo do protesto tambem muda. No começo era pela do acordo com a União Europeia. O protesto ficou conhecido como Euromaidan. Depois, a a ser pela saída do presidente Yanukovych.

A violência vai escalando até a situação ficar insustentável. O saldo final dos 93 dias de ocupação da praça Maidan é de 125 mortos, 65 desaparecidos e 1890 feridos, segundo organizações de direitos humanos citados no documentário. O presidente Yanukovitch renuncia e pede asilo na Rússia de Vladimir Putin.

Nos meses seguintes as forças de Berkut são dispensadas e o novo governo assina o tratado com a União Europeia. A resposta da Rússia é o envio de uma força militar para ajudar separatistas pró-russos a anexar a região da Crimeia. Os protestos a favor da Rússia no leste da Ucrânia crescem. Até o fim de 2015, mais de 6.000 pessoas morrem no conflito.

O documentário é um recorte. Fica aos depoimentos e não mostra a complexidade da divisão da sociedade ucraniana, com uma população do leste pró-russa e a outra parte, majoritária, a favor da aproximação da União Europeia. Parece um prenúncio para a guerra de agora.

O filme também não fala da participação de grupos inspiração nazista, identificados nas imagens pelas bandeiras vermelho e preta na ocupação da praça, ainda que fossem minoria. Críticas apontam ainda suposto apoio do governo dos Estados Unidos no financiamento das manifestações, sem comprovação.

Fato é que as imagens fortes da violência ajudam, e muito, a entender a sensibilidade da questão para os lados envolvidos.

Ukraine on Fire

O documentário produzido por Oliver Stone apresenta argumentos alinhados ao discurso atual de Vladimir Putin. O filme tenta traçar um histórico da Ucrânia desde o século 17, tentando mostrar que o país foi feito por terceiros, uma terra entre o leste e o oeste disputada pelas populações do entorno ou povos de agem.

Grosso modo, durante dois séculos a região da Ucrânia foi repartida entre a Polônia e o império russo, entre outras divisões. Em 1917 teve sua primeira independência proclamada, mas isso durou pouco tempo. Em 1922, a Ucrânia tornou-se um dos estados soviéticos, até a declaração de independência em 1991.

Toda essa narrativa vai sendo construída a fim de mostrar que não existiria uma identidade nacional ucraniana. A região seria naturalmente e historicamente parte da Rússia.

Não se fala no documentário, por exemplo, sobre o Holodomor, ou a Grande Fome, período em que estimados 4 milhões de ucranianos morreram de fome durante a expropriação de grãos para exportação, nos anos 1930, por ordem do governo soviético. O período é tema do premiado filme A Sombra de Stalin, na Netflix.

Outro ponto discutível do filme de Stone é a associação do nacionalismo ucraniano com movimentos de inspiração nazista.

A Ucrânia foi ocupada pela Alemanha nazista de 1941 a 1944. Como em outros países europeus dominados, parte da população local deu e aos alemães. Segundo historiadores, ainda há grupos neonazistas no país, mas não mais do que no resto na Europa. E não da forma como diz Vladimir Putin.

Nas cenas da ocupação da praça Maidan, em 2013, podem ser vistas bandeiras de movimentos de inspiração nazista, nas cores vermelho e preto, mas estão longe de ser maioria. Como em toda manifestação popular, grupos de diferentes origens e ideologias acabam se agrupando. Nem por isso pode-se dizer que a manifestação tenha sido conduzida por neonazistas.

O livro O Último Império, de Serhii Plokhy, diretor do Instituto de Pesquisa Ucraniana da Universidade Harvard, retrata a importância do movimento nacionalista ucraniano pelas independência do páis e na dissolução da União Soviética, em 1991. O movimento foi articulado por um grupo de partidos, como o Partido Republicano Ucraniano, liderado por Levko Lukianenko, um dissidente que ou mais de 20 anos em um gulag justamente por defender a independência da região.

Mikhail Gorbatchov, então o líder soviético, vinha implementando os processos de abertura política e econômica da União Soviética, mas sua ideia não era a dissolução do país. Para ele, a repúblicas soviéticas teriam mais autonomia, mas a união continuaria. Aos olhos do Ocidente tratava-se de um enorme avanço. Para os dirigentes das repúblicas, era pouco.

A Rússia, então liderada por Bóris Yéltsin, e a Ucrânia, as duas maiores repúblicas soviéticas, queriam mesmo era o desmembramento da URSS. Mas a Ucrânia saiu na frente. Em agosto de 1991, em uma votação na Câmara ucraniana, os deputados regionais declararam formalmente a independência da Ucrânia. Sem o dedo de movimentos nazistas.

Ao perceber o protagonismo da Ucrânia no movimento de emancipação das repúblicas soviéticas, Bóris Iéltsin quis recuar e defender a união. Sem a Ucrânia, porém, a manutenção da URSS ficou inviável.

De volta ao documentário. Os principais entrevistados por Stone são o próprio Vladimir Putin e o presidente ucraniano pró-Rússia Viktor Yanukovych, além de outros membros de seu governo. Ou seja, os maiores especialistas em Ucrânia são russos ou ucranianos ligados aos russos.

No final, fica-se com a impressão de que o documentário de Oliver Stone mais parece uma peça de propaganda russa. Mas é esse seu valor para ajudar no entendimento da situação atual da Ucrânia. Se uma guerra é um combate de narrativas, vale entender como funcionam as argumentações de cada lado.

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