"Há ainda riscos de que em vez de diminuir o endividamento, a limitação do parcelamento sem juros tenha o efeito contrário" (andreswd/Getty Images)
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Publicado em 29 de novembro de 2023 às 08h00.
Por Beatriz Kira e Diogo R. Coutinho*
As recentes notícias sobre as tratativas do Banco Central para restringir, por meio do Conselho Monetário Nacional (CMN), as compras parceladas sem juros causam preocupação. A proposta em discussão consiste em estabelecer, inicialmente, um limite de 12 parcelas para tais compras, mas não descarta restringi-los para um máximo de 6. As motivações e os efeitos dessa medida merecem atenção. Em primeiro lugar, porque os bancos já podem limitar, de forma unilateral, o número de parcelas para determinados consumidores de acordo com sua política de risco de crédito, independentemente de ato normativo. Se não o fazem, é por pressão competitiva: emissores de cartão não competem somente por meio de taxas e de benefícios aos consumidores, mas também pelo número de parcelas concedidas para compras com cartão de crédito. Por isso, a nova regra anunciada poderá uniformizar a conduta dos emissores, arrefecendo a competição por meio da limitação do número de prestações e, com isso, acarretando prejuízos aos consumidores.
O parcelamento sem juros é fundamental para os consumidores. Eliminá-lo não é solução para o problema do superendividamento que assola o Brasil. Tampouco contribuirá para reduzir as taxas de juros rotativos dos cartões. A estratégia de limitação a 12 parcelas tem um impacto especialmente negativo sobre a população mais carente e os jovens, que dependem mais do cartão de crédito. Além disso, prejudicará o comércio, restringindo a flexibilidade e a liberdade dos comerciantes e, vale notar, afetando a concorrência entre os métodos de pagamento.
O parcelamento sem juros é, na prática, uma maneira pela qual o varejo viabiliza compras por parte dos titulares de cartões, diferindo o pagamento sem custos adicionais para o consumidor. Com isso, essencialmente, o varejo amplia o prazo de pagamento para o titular do cidadão, dividindo o valor da compra em parcelas que caibam em seu bolso, sem que seja necessário buscar financiamento em um banco – ou seja, sem fazê-lo incorrer em taxas de financiamento bancário e nos altos juros do cartão. Isso é especialmente importante para aquisições de bens duráveis e compras de maior valor, como eletrônicos, eletrodomésticos, materiais de construção, viagens, serviços médicos e automotivos, entre outros.
Como se nota, a redução das opções no parcelamento sem juros tem impacto direto sobre os consumidores, especialmente aqueles que mais valorizam e dependem do uso do cartão de crédito. Como resultado, o teto imposto no número de parcelas pode fazer com que muitas pessoas se deparem com prestações que ultraam sua capacidade financeira. De acordo com o Relatório de Cidadania Financeira do Banco Central (2021), a população de baixa renda depende significativamente do cartão de crédito como um instrumento de o ao crédito, em comparação com outras faixas de renda. Para esse grupo, as modalidades de cartão de crédito representam a maior parte das transações. Além disso, uma eventual redução de opções de número de parcelas afeta desproporcionalmente os jovens, já que o cartão de crédito continua sendo a forma mais utilizada por eles, correspondendo a 38% das operações e a 13% da carteira ativa deste público (de 16 a 29 anos).
Há ainda riscos de que em vez de diminuir o endividamento, a limitação do parcelamento sem juros tenha o efeito contrário. Na prática, pode acabar desviando a demanda em um mercado com maior concorrência, como o de cartões de crédito, para um mercado notoriamente concentrado: o setor bancário. Quando as opções de parcelamento sem juros forem restritas e as prestações não couberem no orçamento das pessoas, será, com dito, necessário buscar outras formas de financiamento, muitas vezes com taxas de juros mais altas. Isso na prática desloca a demanda do cartão de crédito para os financiamentos oferecidos pelos bancos, um segmento menos flexível e mais concentrado.
Ademais, essa medida vai de encontro a importantes marcos regulatórios, como a Lei 12.865/2013, que trouxe competição para os meios de pagamento e preconiza, entre outros princípios, a promoção da competição entre arranjos de pagamentos e a inclusão financeira. Mais ainda, tal restrição não está respaldada na recém-aprovada lei do Desenrola: se de um lado essa lei trata dos juros no cartão de crédito e estabelece mecanismos para limitar as taxas de juros a fim de beneficiar a população, ela não prevê, de outro lado, limitação do número de parcelas. Limitar as taxas de juros gera benefícios palpáveis para consumidores, enquanto restringir a opção de parcelamento sem juros tem um efeito contrário.
Em resumo, seja proibindo a prática do parcelamento sem juros, ou impondo restrições ao número de parcelas sem juros que os varejistas podem oferecer, a limitação das compras parceladas sem juros é uma medida temerária a ser evitada. Ela prejudica tanto os comerciantes quanto consumidores e não ataca a raiz do problema do endividamento no Brasil. Pelo contrário, força famílias brasileiras a recorrerem a modalidades de crédito mais caras. Será um tiro no pé se for adotada.
*Beatriz Kira é doutora e bacharela em direito pela Universidade de São Paulo e mestra em Ciências Socias da Internet pela Universidade de Oxford. Atualmente é Professora de Direito na Universidade de Sussex, no Reino Unido.
*Diogo R. Coutinho é professor de direito econômico e economia política na USP, onde coordena o Grupo Direito e Políticas Públicas.
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