Comissão Interamericana de Direitos Humanos cita como principais ameaças contra os povos orignários o garimpo ilegal, a violência armada e a omissão estatal na demarcação de terras; MPI fala em avanços
Mulheres e crianças yanomami em Surucucu, na Terra Indígena Yanomami (Fernando Frazão/Agência Brasil)
Agência de notícias
Publicado em 22 de maio de 2025 às 07h52.
Última atualização em 22 de maio de 2025 às 07h53.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou a situação de vulnerabilidade contínua dos povos indígenas e o cumprimento parcial das recomendações feitas ao Brasil desde 2021.
Em seu relatório anual para 2024, recém-publicado, a CIDH afirma que o Brasil avançou na criação de estruturas institucionais — como o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e o aumento do orçamento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) —, mas que ainda persistem "graves falhas na proteção efetiva dos territórios indígenas", principalmente diante de ameaças como o garimpo ilegal, a violência armada e a omissão estatal na demarcação de terras.
Além disso, a CIDH reafirma que os povos indígenas continuam entre os mais impactados pelas desigualdades estruturais e pela ausência de políticas públicas efetivas. A comissão sustenta em seu relatório que a criação de um ministério específico para esses grupos e mais verbas para Funai não se traduziram em proteção eficaz contra invasões de terras, violência e ameaças aos direitos dos povos originários à posse da terra.
A CIDH afirma que o marco temporal, ---- tese de que os povos indígenas só teriam direito às terras que ocupavam no momento da promulgação da Constituição, em 1988 ---- é contrário às normas e padrões internacionais e interamericanos de direitos humanos, especialmente à Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
--- A insegurança jurídica quanto à posse de terras continua devido à possibilidade de reintrodução desse “marco temporal”, que restringe reivindicações e títulos em favor das comunidades indígenas. Apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter criado uma comissão de conciliação, as entidades se consideram sub-representadas nela e manifestam discordância com a proposta -- afirma ao GLOBO a advogada barbadiana Roberta Clarke, responsável pela relatoria do Brasil na CIDH.
Em 2023, o STF considerou inconstitucional a tese do marco temporal, porém, uma semana depois, o Senado aprovou uma lei no sentido contrário. O projeto chegou a ser vetado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas o veto foi derrubado pelo Congresso. O ime segue no STF.
A CIDH voltou a alertar para a crise humanitária vivida na Terra Yanomami, especialmente em relação à saúde e à segurança alimentar das comunidades, no entanto, reconheceu que o Estado brasileiro tem adotado medidas graduais para conter e remover invasores e garimpeiros dessa área.
Outro ponto positivo avaliado pela CIDH é aprovação da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) de um pedido de reparação coletiva por graves violações dos direitos das comunidades indígenas durante o regime militar (1964-1985), incluindo massacres, torturas e remoções forçadas.
A CIDH termina suas recomendações reforçando a necessidade de "demarcação urgente" de terras, fortalecimento da fiscalização ambiental e combate ao crime organizado na Amazônia. A Comissão também observou que defensores dos direitos humanos, ambientalistas e líderes indígenas ainda estão expostos a riscos extremos.
O indigenista Bruno Pereira (ao centro) em missão realizada pela Funai , no Vale do Javari (Divulgação/Funai/Arquivo)
A CIDH também destacou a importância de fortalecer a presença do Estado na região do Vale do Javari, enfatizando a necessidade de responsabilidade contínua e ativa nas investigações e recomendando o estabelecimento de protocolos para garantir a transparência nos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, em junho de 2022.
A comissão diz que continuará monitorando a implementação de medidas protetivas aos membros da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), por meio do mecanismo de medidas cautelares.
-- Apesar dessas medidas, a CIDH está preocupada com os membros da Univaja, que continuam se sentindo inseguros. A Comissão continua a usar seus instrumentos para monitorar a situação e garantir que as medidas de proteção atinjam seu objetivo. Há certamente uma conexão entre os assassinatos de Dom Phillips e Bruno Pereira e as ameaças que os membros da Univaja continuam enfrentando. O andamento das investigações e a responsabilização por crimes brutais e acusações criminais contra essa equipe são cruciais para encerrar esta situação perigosa. -- diz Roberta Clarke.
A responsável pela relatoria do Brasil na CIDH ainda faz um alerta contra a violência em outros estados, além do Amazonas.
--- Há também um aumento da violência em territórios indígenas, especialmente nos estados da Bahia, Paraná e Mato Grosso do Sul, onde lideranças e membros das comunidades Pataxó Hã-Hã-Hãe, Avá-Guarani e Guarani Kaiowá foram assassinados -- completa Roberta ao lembrar das mortes de Ademir Machado Reis, da Reserva Indígena Caramuru Catarina Paraguassu; de Roberto Bráz Ferreira, indígena Pataxó; e Neri Guarani Kaiowá, morto a tiros durante uma operação da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul.
-- São muitos desafios, continua Roberta. -- O Brasil deve adotar medidas imediatas e eficazes para prevenir, investigar e punir ações que ameacem a integridade dos povos indígenas, sejam elas perpetradas por terceiros ou por agentes do Estado. Além disso, o Estado deve implementar medidas de proteção para comunidades indígenas que enfrentam ameaças iminentes -- finaliza.
Procurado, o Ministério dos Povos Indígenas afirmou que vem atuando "diretamente na promoção de iniciativas de proteção aos territórios e suas populações, na demarcação de terras e no combate a atividades ilegais" e que a pasta "compreende a manutenção das violações aos direitos dos povos indígenas, que acontecem há mais de 500 anos e não seriam resolvidas em apenas quatro anos de gestão, e sabe da importância de ampliar a promoção de políticas públicas para reverter esse cenário agravado por projetos como o “Marco Temporal” e outras tentativas de retrocesso nos direitos dos povos indígenas", diz em nota.
Sobre a citação à situação da Terra Yanomami, o MPI diz que houve investimento extraordinário de R$ 1,2 bilhão, anunciado em janeiro de 2024 e que a área de garimpo ativo dentro do território indígena sofreu uma redução expressiva de 94%, além de ter reaberts 100% dos serviços de atendimento à saúde, com aumento do número de profissionais atuando na região e redução de 21% do número de óbitos na população Yanomami entre 2023 e 2024.
O MPI conclui a resposta citando o fortalecimento da Funai, com a recomposição orçamentária, a realização do concurso público (com 502 vagas para o órgão) e a criação das carreiras indigenistas, além da homologação de 13 Terras Indígenas (na última década antes da implementação da pasta foram apenas 11) e de 11 portarias declaratórias - após 6 anos sem nenhuma portaria declaratória assinada.